Médicos prescritores de maconha medicinal são processados e enfrentam insegurança jurídica
09/09/2025
(Foto: Reprodução) A Prefeitura de São Paulo anunciou recentemente que vai ampliar o acesso a medicamentos à base de Cannabis no Sistema Único de Saúde municipal para o tratamento de mais de 30 doenças. A lista inclui transtornos psiquiátricos, dores crônicas, doenças neurodegenerativas, epilepsias, autismo e algumas condições reumatológicas. A medida busca reduzir a judicialização – pessoas que antes precisavam recorrer a ações na Justiça poderão receber o tratamento diretamente na rede. Apesar do crescimento do número de pacientes, médicos prescritores da maconha medicinal têm sido processados pelos Conselhos Regionais de Medicina – em ações que tramitam em segredo de justiça. Para entender a polêmica, entrevistei Jackeline Barbosa, presidente da Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia (AMBCANN).
Maconha medicinal: até julho do ano passado, cerca de 672 mil pacientes usaram produtos à base de Cannabis no Brasil
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A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o uso clínico de produtos derivados da maconha em 2019. No entanto, Conselhos Regionais de Medicina vêm punindo médicos prescritores com processos, criando um clima de apreensão entre os profissionais. O que a Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia tem a dizer sobre a questão?
Desde que a Anvisa autorizou o uso clínico de produtos derivados da Cannabis, o número de prescritores e de pacientes tem crescido de forma consistente. Dados de auditorias especializadas mostram que, até julho do ano passado, cerca de 672 mil pacientes usaram produtos à base de Cannabis no Brasil. De julho de 2023 a julho de 2024, o Governo Federal gastou R$ 105 milhões com o fornecimento público de Cannabis para uso medicinal através de recursos judiciais. Isso reflete a demanda crescente da sociedade e a confiança de médicos de diversas especialidades na prescrição. A AMBCANN defende que o Brasil siga a direção já adotada em outros países: garantir o acesso seguro, regulamentado e baseado em evidências, sempre com o médico e o paciente no centro da tomada de decisão. Uma nova regulamentação deve ser construída de forma participativa, com base em evidências científicas e na realidade sanitária, e não em proibições ideológicas. A associação também entende que as sanções que têm ocorrido por parte de alguns Conselhos Regionais de Medicina são injustificadas, pois a prescrição está amparada por normas da Anvisa, por decisões do poder público e pela autonomia médica, direito garantido pela Constituição e pela própria ética profissional. O médico tem a prerrogativa de prescrever o melhor tratamento para o seu paciente, inclusive em uso off-label, prática corrente em todas as áreas da medicina. Se o Conselho pune médicos que diagnosticam, avaliam, prescrevem, acompanham, estudam, ensinam, quem cuidará dos pacientes que dependem desse tratamento para viver com qualidade e dignidade?
Observação: o termo off-label se refere à prescrição de um medicamento para uma finalidade diferente daquela aprovada oficialmente pela agência reguladora.
Quando a importação de produtos derivados da maconha foi regulamentada, médicos de diversas especialidades passaram a receitar a Cannabis para uma série de condições: entre eles, Doença de Alzheimer e Parkinson, dores crônicas e oncológicas, ansiedade e transtornos de sono, com resultados bastante positivos. Em outubro de 2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma resolução altamente restritiva, limitando sua utilização a síndromes convulsivas, mas, diante da reação dos pacientes e suas famílias, voltou atrás em sua decisão. O fato de, atualmente, não haver nenhuma resolução em vigor acaba sendo prejudicial para médicos e pacientes?
Infelizmente, o Conselho Federal de Medicina desconsiderou os estudos mais recentes e se posiciona de maneira contrária ao uso medicinal racional e até ao ensino sobre produtos derivados da Cannabis. A Resolução nº 2.324/2022 do CFM realmente foi extremamente restritiva e usou como referência artigos de dez anos atrás, não só ignorando as evidências científicas atualizadas e limitando o uso clínico da Cannabis, mas também proibindo o ensino da endocanabinologia como área de conhecimento, fora do contexto dos congressos organizados por sociedades de especialidades médicas. Essa postura feriu a autonomia médica, restringiu o direito à educação e negou avanços científicos já reconhecidos no Brasil e no mundo. Ecoando esse posicionamento, alguns Conselhos Regionais de Medicina vêm instaurando sindicâncias e processos ético-profissionais contra colegas prescritores e professores, gerando insegurança e até medo entre profissionais. A pressão da sociedade civil, de pacientes, famílias e entidades médicas resultou na suspensão da Resolução em 2023. Hoje, de fato, não existe resolução vigente sobre o tema. Essa ausência cria insegurança jurídica para médicos e pacientes e deixa espaço para a atuação médica por outros profissionais de saúde – ainda que, paradoxalmente, amplie a liberdade do exercício médico apoiada nos direitos fundamentais, já que não há restrição normativa formal em vigor. Enquanto os médicos sofrem sindicâncias e processos éticos, vários outros Conselhos profissionais reconhecem a utilização medicinal da Cannabis, como odontologia, veterinária e fisioterapia, entre outros.
A prefeitura paulista anunciou que vai expandir os casos para os quais os medicamentos à base de maconha podem ser receitados. A lista inclui mais de 30 patologias que vão de epilepsia, Parkinson e Alzheimer até depressão, distúrbio do sono e dor crônica. Há explicação para tal discrepância de ações por parte dos órgãos?
O Brasil vive esse paradoxo. Enquanto alguns Conselhos de Medicina insistem em restringir a prática médica, diversos entes públicos têm avançado na garantia do acesso da população aos medicamentos de Cannabis. Essas iniciativas mostram que há uma crescente convergência entre a ciência, a clínica e as políticas públicas, enquanto somente o Conselho Federal de Medicina, entre todos os órgãos de classe, segue resistindo. A discrepância decorre de uma postura corporativa desatualizada e conservadora que, em muitos casos, não dialoga com as evidências, ou com a realidade da prática médica, nem com os direitos constitucionais dos pacientes. A endocanabinologia já é parte inegável do conhecimento na medicina contemporânea. Cabe ao Brasil acompanhar a ciência, e não atrasar o cuidado. Punir médicos por prescrever ou falar sobre o uso medicinal da Cannabis é obstruir a única via de acesso legal no Brasil a pacientes que encontrariam nesse tratamento sua única chance de qualidade de vida.